CÓRREGO das ANTAS
Carlos Bonfim
Professor da FACEDI-UECE
Professor da FACEDI-UECE
14 de março de 1971. Miguel, ferido, encontrava-se só, num quarto secreto, amiúde: uma estante, mesinha, colchão ao piso, uma máquina de escrever portátil, paredes vazias, vários panfletos ao lado do sanitário. O ferimento sangrava vazio com transe, mas sem líquido. Então à luz de vela cortou a noite lendo velhos jornais.
No outro dia. Bem cedo da manhã. Longe dali. No quartel do exército. Em reunião do S/2, o Capitão Correia, sujeito magro, amargo, de bigode vultoso, de fala cheia e curta, foi incisivo: “Eram cinco inimigos da pátria; desinfetamos quatro; resta um sobrevivente; está entocado por aí; a ordem é achá-lo... morto”.
A noite desse dia abateu-se densa. A chuva desabou forte sobre os lisos paralelepípedos das sinuosas e apertadas ruas da cidade – amedrontada. No seu versar sobre o chão, águas levavam microsseres pelos esgotos até ao Córrego das Antas, aonde, no meio da noite, foram encontrados, pela população local, em suas águas escuras, quatro macrosseres, boiando... sem vida.
Desde então, sombrio pareceu transcorrer o tempo. Nisso caiu o Regime Militar. Desmoronou o Muro de Berlim. No entanto, Miguel sobreviveu. Não se tornou professor, jornalista, empresário e nem político. Só um feirante de verduras, chamadas por ele de “cheiro verde da terra”. Mas em todos esses anos, na mesma data, 14 de março, Miguel dirigia-se ao Córrego das Antas. Sobre suas águas, ainda mais escuras e turvas, jogava flores vermelhas – e murmurava uma prece íntima, dolorosa: “Aos meus queridos companheiros, à minha ardente utopia”.
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As memórias de muitos desses revolucionários - homens comuns que se rebelaram contra as formas mais sádicas e cruéis da autocracia militar - não podem desaparecer no rastro da história que se quer apagar. As novas gerações precisam conhecer a saga desses verdadeiros heróis, obtusamente ignorados por jovens que, infelizmente, celebram ensandecidos os ídolos do esporte, da música e da moda astutamente forjados pela mídia burguesa. A propósito, vejam a publicação da autobiografia de Gregório Bezerra pela Editora Boitempo e o comentário de Edson Teles sobre a Comissão Nacional da Verdade.