sexta-feira, 15 de abril de 2011

Com açúcar e com afeto...

Cogito ergo sum: o pensamento de René Descartes



Prof. Paulo Massey - IFCE-Baturité



As transformações ocorridas ao longo do século XVI, substanciadas na retomada renascentista do pensamento clássico, abalaram não só as estruturas dogmáticas do pensamento religioso, calcado na autoridade eclesiástica e na provação de fé, mas também criaram um ambiente ofegante de dúvida e desencanto em relação ao mundo e à tarefa de conhecê-lo em sua verdade. A ironia cética (de um Montaigne) surge, então, como desafiadora das intenções mais ou menos pretensiosas, iluminadas por Deus ou pela experiência. Num ambiente de profunda descrença quanto à objetividade do conhecimento humano, restara apenas um caminho à ciência: o método. Nessa empreitada, pois, o empirismo indutivo de Bacon e o racionalismo dedutivo de Descartes encenam as grandes querelas do século XVII e semeiam as linhagens fundadoras da ciência moderna, estendidas até os nossos dias.


Descartes, contudo, não se furtara a esta conjuração contra a razão e contra o dogma: impôs-se também a disciplina da dúvida, do questionamento. Ao seu modo, porém, o fez de forma metódica, levando-a às últimas conseqüências justamente para provar o contrário; parecia-lhe impossível vencê-la evitando-a ou pretendendo reconfortar-se no âmago de certezas frágeis, isentas da provação cética. Partindo da existência de idéias claras e distintas, concebidas igualmente por todos, Descartes pretende ampliar a “cadeia de razões” que permitiria a construção de uma “matemática universal”: a perfeita sabedoria aplicada a quaisquer objetos. Esse princípio de evidência e clareza, porém, circunscreve-se às certezas da subjetividade, e só têm força de evidência as idéias que são claras – uma tautologia, portanto. Era preciso garantir que essas idéias, além de claras, correspondessem a algo real. Para levar a dúvida a uma dimensão extrema, hiperbólica, o filósofo da razão moderna traz à cena o malin génie – o gênio maligno, uma assombrosa ilusão que mantém os homens presos no universo interior da consciência, distantes ou infensos ao mundo exterior, tal como os alumnu de Platão que vivem na escuridão da caverna ou os idola de Bacon. Porém, um certo desejo de fugir à dúvida renitente leva, contrariamente, à dúvida metódica, ou seja, se duvido penso, e ao duvidar do que penso consigo extrair daí um núcleo de certeza que se acumula e se expande, até sua radicalidade. Assim como na ordem natural de uma progressão matemática, também para o conhecimento das coisas mundanas procedemos de acordo com o que já temos: o conhecimento existente, em relação ao qual o desconhecido constitui apenas um dado relativo, cuja ordem, natureza ou função é possível desvelar numa cadeia de termos relacionais. Para isso, porém, é preciso ir além do preceito de evidência, pois, nem tudo aparece imediatamente intuível. Outros procedimentos precisam ser acionados: a análise, a síntese e a enumeração. Contudo, será vã a tarefa de desenvolver tais instrumentos procedimentais se não estiver resolvida a questão epistemológica fundante desta atividade: a possibilidade de conhecer algo exterior e objetivo (a natureza). Até então, a dúvida levara apenas à existência solipsista do ser pensante – “penso, logo existo”. Ir além, chegar à objetividade do mundo existente fora da consciência – o mundo físico, onde se situa seu próprio corpo – requer o interregno de uma força maior, a garantia última de qualquer existência: Deus. Tratava-se, porém, não de demonstrar a existência de Deus (res infinita), mas de demonstrar que, por que Deus existe, existe a idéia de Deus (res cogitans). Surge então, no sistema de deduções lógicas de Descartes, o bon Dieu que torna impossível o malin génie, ou seja, a sabedoria de Deus, que não permite o erro, o engano, a injustiça. O Deus cartesiano é, assim, a garantia da objetividade do conhecimento científico.


(Texto utilizado em sala de aula, no 1° semestre do curso de Gastronomia do IFCE - Campus Avançado de Baturité. Disciplina: Metodologia do Trabalho Científico)

quarta-feira, 6 de abril de 2011

STF: HORROR E CINISMO

David Moreno Montenegro

Certa vez ensinou o jurista George Jellinek (1851 – 1911) que as normas jurídicas não poderiam escapar às “forças normativas da dimensão fática”, alertando que as leis delineadoras das ações não poderiam negligenciar o poder dos fatos sociais. A sensibilidade de captar os sentimentos e anseios contidos nos clamores populares, nas manifestações sociais, nas vísceras vicejantes do fazer cotidiano de uma sociedade parece ser capacidade em falta em nossos ministros do STF, tribunal muito bem caracterizado por importante filósofo uspiano de casa dos horrores. Nos últimos dias, a assustadora casa deu mais uma prova de seu temido repertório de perversidades ao rejeitar projeto de lei endossado por mais de um milhão de cidadãos brasileiros que lá gravou sua assinatura, afora aqueles que mesmo distantes das pilhas de papéis que movem o Estado burocrático brasileiro, deixaram sua marca na história por palavras de ordem.

Tão assustador quanto foi assistir com que indiferença a maior parte dos doutos ministros alertavam para os “perigos” em se considerar a paixão vinda das ruas como elemento determinante na decisão técnico-jurídica que deveriam tomar, afirmando que o papel que desempenhavam era o da defesa dos valores consagrados na carta magna de 1988. O argumento vencedor destacava o clima de insegurança jurídica que poderia ser gerado ao se mudar as regras do jogo com o mesmo em andamento. Pelo que me consta, os pretendentes a cargo parlamentar atingidos pela nova legislação seriam aqueles já condenados em alguma instância judicial, devendo os mesmos ser impedidos de disputar cargos públicos até que a querela jurídica fosse solucionada. Ora, não se trata de ataque à presunção de inocência, mas, antes, uma medida protetora da sociedade daqueles que aspiram ao poder político e são marcados por evidentes desvios éticos, poder tão próximo neste país dos mais temidos arroubos autoritários.

Considerar os valores contidos na constituição de 1988 como imutáveis, congelados no tempo revela mais um impressionante, e por que não dizer cínico, recurso retórico que nega o caráter mutável, histórico e contingente dos valores de cada época, valendo-se de tal engodo discursivo para legitimar verdadeiros atentados à vontade e iniciativa populares, trazendo à tona o caráter nebuloso e insólito das decisões do referido tribunal que, nos últimos anos, além de ter dado provas da simpatia por banqueiros criminosos, acaba de incluir mais uma categoria no panteão às avessas de seu show de bizarrices: políticos corruptos.

Do que se trata, portanto, é nos perguntar sobre as bases efetivamente democráticas de tais decisões e a capacidade destas de refletir a realidade escancarada das mudanças há muito gestadas e reivindicadas por um país ainda neófito nas práticas democráticas, uma vez que são tomadas por sujeitos que se julgam acima da roda viva da história, como que se pronunciassem dum limbo marcado pela vacuidade, impossível de ser influenciado pelas verdades do mundo profano. Eis mais uma cena do espetáculo maldito do circo dos horrores.



David Moreno é Cientista Social (UECE); Mestre em Sociologia (UFC); Professor de Sociologia do IFCE. Artigo publicado no Jornal O Povo (clique aqui para ver)