Epitácio Macário
professor de Economia Política (UECE)
professor de Economia Política (UECE)
Quando a tropa invadiu o campus, uma nuvem tomou o nascente e cobriu de sombras a cidade universitária.
A
noite tinha começado bela. A lua cheia derramava branda luz azulada
sobre a copa das árvores. Os ipês vestiam-se de folhagem roxa e amarela,
fora de época. As cercas vivas, que ladeiam os jardins da reitoria,
pareciam um tecido de chita. Era dezembro, de brisa paulistana.
No
pavilhão central, estudantes, professores e gente da comunidade
festejavam a posse do território. Alternavam discursos, música, teatro.
Clowns tropeçavam nas gargalhadas da assistência. Um físico falava da
apropriação da ciência pelas corporações e o aparte foi concedido a um
sociólogo, que denunciou os tempos de autoritarismo e guerras. Alunos da
escola de artes e militantes sociais revezavam, declamando Drummond,
Pessoa, Benedetti...
Não que não se desconfiasse, mas o
anúncio caiu como chumbo sobre as cabeças. Dos transmissores da rádio
livre, instalada no alto do torreão da entrada, o locutor falou em voz
pausada e pesarosa: “Amigos estudantes... Companheiros professores...
Lutadores do povo... Com preocupação, anunciamos que um comboio militar
acaba de adentrar o campus”.
A fuligem pareceu condensar-se no céu e uma sombra cobriu o campus.
Homens
em formação de três colunas avançaram rumo ao pavilhão, acompanhados em
terra por cães farejadores e, no alto, por atiradores de elite, num
helicóptero. No palácio do governo, cascatas de luzes resplandeciam numa
festa preparada para a ocasião. O chefe da guarda recebia e transmitia
às autoridades informações precisas sobre a operação “natal no campus”.
A
luz foi cortada e a tropa já iniciava a desocupação, quando Maria,
estudante de Pedagogia da Terra, entrou em trabalho de parto. Ao seu
lado, José, liderança dos círculos bolivarianos e estudante de
Agronomia, bradou: “Compañeros, necesito ayuda aquí. Mi hijo va a
nacer”. E, exultante, arrematou: “que él vienga a vivir con dignidad y
luchar junto a nosotros por la libertad”. Um professor de medicina
rasgou caminho na multidão, dirigindo-se ao casal e gritando em tom
imperioso: “Acendam as luzes! Organizem um círculo! Protejam Maria e
José!”.
Lanternas e isqueiros foram acesos, formando
imensa ciranda de luzes. Por fora, vis a vis com os coturnos, formou-se
um tapete de mulheres deitadas ao chão. No centro, acalorada discussão
entre o catedrático de medicina, residentes, estudantes de enfermagem e
duas parteiras do povo que lá estavam. Os gemidos iam e vinham ao ritmo
das contrações.
Um soldado, com treinamento em
primeiros socorros, desvencilhou-se do escudo e do coldre e correu para
ajudar. Hesitando entre a honra e a obediência, o comandante suspendeu a
operação e ordenou a retirada da tropa para os arredores do campus.
Como
num mistério, o nevoeiro desfez-se e a lua mostrou-se em toda sua
majestade no centro da esfera celestial. Pendurada no firmamento, uma
estrela solitária parecia querer beijar a terra. Do alto do torreão, o
fato era transmitido para as comunas urbanas e assentamentos dos
arredores da cidade.
Não tardou para que a noite fria
fosse invadida por caravanas que se dirigiram à cidade universitária. Os
assentados da terra trouxeram frutas da época e ervas aromáticas; os
operários das fábricas ocupadas, tecidos de algodão. Dos currais da
faculdade de veterinária, tangeram, até o local, um casal de bovinos e
duas ovelhas.
Sinos já se faziam ouvir alhures quando o
relógio da praça central marcou meia noite. O tempo pareceu suspenso,
tão profundo o silêncio e a inércia da assembleia; era como que
aguardassem a realização da profecia. Foi quando a criança veio à luz,
silenciando apenas quando a segunda anunciou-se com estridente choro.
“Gêmeos!”, gritou em uníssono a brigada que assistia a mãe.
Enamorado,
José abraçou e beijou Maria; depois, com a ajuda do soldado, ergueu as
crianças bem no alto e proferiu: “Bienaventurados los hijos del pueblo,
porque el futuro les pertence a ellos”.
A madrugada
iniciou embalsamada com o cheiro das frutas, dos incensos e ervas raras
trazidas de longe pelos lutadores do povo. A assembleia fora
restabelecida nas primeiras horas de 25 de Dezembro. E quando os raios
de sol atingiram o torreão da entrada, uma estudante de jornalismo
transmitiu em ondas curtas: “Com profunda alegria, anunciamos que a
polícia deixou a cidade universitária e a assembleia declarou o campus
território livre. Informamos também que, a zero hora, Maria deu à luz
duas crianças, filhas de José. Por decisão da assembleia, os bebês
receberam o nome de Florestan e Maria de Jesus, filhos do povo”.
E toda a cidade acordou com a música O Cio da Terra transmitida pela rádio clandestina.
E toda a cidade acordou com a música O Cio da Terra transmitida pela rádio clandestina.
Para os companheiros da USP.
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