Paulo Massey
Sociólogo, professor do IFCE
Sociólogo, professor do IFCE
Há três condições fundamentais para a aplicação dos sistemas de cotas das quais se pode esperar efeitos positivos e sem as quais toda resistência que ora se opõe àqueles sistemas encontrará lamentável justificativa.
Primeiro, que as cotas sejam sociais, levando em consideração não apenas a etnia, a cor ou raça declarada, mas sim a situação de desemprego, de recém-egresso do sistema prisional, de escolaridade cursada majoritariamente ou concluída no ensino público e demais condições ou circunstâncias que colocam as pessoas num lugar de considerável vulnerabilidade sócio-econômica, tornando o perfil de renda familiar ou “per capita” fator de “corte” frente aos outros critérios.
Isso por que, dentre outras distorções, é preciso evitar, por exemplo, a migração de estudantes oriundos de famílias de alta renda para as escolas públicas, tendo em vista disputar as vagas reservadas pelas cotas. Uma vez ocupada por alunos de maior nível, isso não significa que a escola, ela mesma, tenha melhorado seu ensino. É preciso, pois, que a escola pública eleve seu nível por que melhorou o ensino aos seus alunos e eleve o nível de seus alunos porque melhorou seu ensino.
Segundo, que o sistema de cotas não esteja refém de programas de governo, sendo necessário institucionalizá-lo, inserindo-o no desenho de uma estrutura maior: algo como um plano nacional de educação que, entre outras medidas de longo prazo, vincule o tempo de vigência das cotas à obtenção de determinados índices de qualificação na educação básica, obedecendo a metas, prazos e à avaliação crítica dos resultados.
Terceiro – e isso é decisivo -, que os alunos cotistas assumam a dianteira de um movimento político que há décadas luta por uma “universidade pública, gratuita e de qualidade”; ou seja, que em nenhum momento esses estudantes tenham a ilusão de que a universidade, tal como ela existe e é concebida, lhes garantirá algo mais do que um diploma; que eles percebam e levem às últimas conseqüências as contradições, as desigualdades e as injustiças sociais reproduzidas, com maior ou menor gravidade, de modo particular, no interior da universidade.
Para não dizer muito, isso significa que, ao ingressarem no ensino superior, esses estudantes terão de lutar diariamente contra uma densa cadeia de injunções e iniqüidades que há muito domina a administração e o meio acadêmico - um complexo que responde pelas hierarquias de poder e comando, pelos privilégios e suas clientelas, pela ausência de transparência e participação direta nas instâncias superiores de decisão, pela prioridade do ensino em detrimento da pesquisa e da extensão, pela prevalência do interesse estritamente econômico na decisão de quais pesquisas serão financiadas, enfim, pelas disparidades materiais que dividem as áreas e os departamentos científicos e, por conseqüência, segregam astuciosamente estudantes e professores, causando inestimável prejuízo à vida universitária, sobretudo à produção, à divulgação e à integração dos conhecimentos, das realizações e das oportunidades.
Ou seja, esses estudantes terão de afirmar, a todo instante, como quem marca o passo das mudanças lentas, mas necessárias, algo que diz o seguinte: “queremos a universidade, mas essa não é a universidade que queremos”. Dirão isso com a certeza de que o impossível não é exatamente aquilo que não tem realidade, mas sim apenas um modo de fazer com que o pensamento supere a si mesmo, em direção a sua realização, à realização do que antes era impensável.
Pois bem, quando os oportunistas, os ressentidos e os pietistas que ocasionalmente clamam pelas cotas se juntarem aos liberais e aos conservadores, condenando em uníssono e furiosamente seu caráter “socialista”, com a acusação de que “esse absurdo” tanto desfigura o papel estratégico da universidade quanto a desvia de sua função tradicional, então saberemos, de fato, a quê e a quem devem servir as cotas.
“Que a universidade se pinte de negro, de mulato, de operário, de camponês” (Che Guevara)
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